No fim das contas, o vaqueiro escritor
E vi a
mim mesma com Sam na cozinha dele em Kentucky, e estávamos falando da escrita.
No fim das contas, ele dizia, tudo serve de forragem para uma história, o que
significa, acho, que somos todos forragem. Estava sentada na cadeira de madeira
de espaldar reto. Ele estava de pé olhando para mim como sempre. “Papa was a
rolling stone” tocava no rádio, que era marrom no estilo anos 40. E pensei,
quando ele esticou a mão para tirar o cabelo dos meus olhos, o problema dos
sonhos é que no fim a gente acorda.
Assim
termina O ano do macaco (2019), último livro que li de Patti Smith. Sam
é Sam Shepard. Dramaturgo ganhador do Prêmio Pulitzer em 1979 e do PEN/Laura
Pels em 2009. Escreveu três coletâneas de contos e mais de cinquenta peças. Partes
do livro Crônicas de motel (1983) estão presentes no filme cult Paris,
Texas (1984), dirigido por Wim Wenders e vencedor da Palma de Ouro em
Cannes, do qual Shepard é roteirista. Atuou em mais de sessenta filmes e
recebeu uma indicação ao Oscar em 1984 por The Right Stuff (Os eleitos –
onde o futuro começa). É o vaqueiro escritor que habita os sonhos de Patti Lee em
Linha M (2014).
Há um
retorno da figura metafórica do escritor que conduz as coisas nos livros de
Patti Smith. Essa figura me atraiu. Entrei no labirinto e logo estava
pesquisando qual livro ler de Sam Shepard. Queria o escritor concreto.
Escolhi
Aqui de dentro (2017), traduzido por Denise Bottmann, com prefácio de
Patti Smith. Pensei logo em uma “poética dos sonhos”. Porque, no fim das
contas, são eles que amarram o que é possível ser narrado. No prefácio, você
percebe que a amizade entre os dois se transformou em comunhão existencial.
Ninguém soube melhor que ela compreender o andarilho que trilhou
instintivamente, de olhos abertos, as distâncias de suas estradas misteriosas.
Distribuídos
em 56 pequenos capítulos, com estruturas nem um pouco convencionais, os fragmentos de Aqui de
dentro ampliam de diversas formas a paisagem interna de um só narrador, mas
de essência mutável. Não foi fácil me encontrar nas imagens entretecidas na
prosa rápida de Shepard, em sua pródiga poesia, nos diálogos e monólogos. Linguagem
visceral de filme caseiro tremido.
Não foi
fácil. Mas quando compreendi o coração cansado e a honestidade vigorosa do
narrador, encontrei uma unidade. O menino fugitivo, o adolescente firme
e o adulto inquieto (mais tarde traído pelos músculos) são uma mesma voz.
A
escrita de Sam Shepard me agrada porque a profundidade dos significados se
manifesta em frases curtas, que dizem tudo. Através de imagens poeirentas
arrancadas da memória, há o contorno da relação problemática com o pai,
mencionado em inúmeros capítulos como “homenzinho minúsculo”. Essa imagem é
elaborada e reelaborada em sonhos recorrentes de uma forma encadeada.
Também
recorrente é a presença de Felicity. O narrador menino nunca tinha ouvido
aquele nome antes – como que saído de um romance inglês. Nem preciso dizer
que o mise-en-abyme, meu caderno de anotações, foi rabiscado com mais
alguns títulos. Felicity. Gritava feito um coelho preso na armadilha quando
sentava de costas no pau do meu pai. Eu nunca tinha ouvido tanto êxtase e tanto
horror, tudo ao mesmo tempo. A focalização é do menino, o discurso não. O
discurso é da memória.
A
narrativa se desenrola entre tons baixos que inesperadamente se tornam elevados
quando alcançam a poesia.
Na
composição dos episódios, surge o narrador adulto contracenando com a Garota
Chantagem. Neles predominam diálogos aparentemente simples. Alternadamente, as
conversas vão se tornando mais complexas e ajudam a definir a personagem que é
esse narrador, para quem a ficção é libertação. No final desses diálogos, toda
a discussão se concentra no processo da escrita.
Entre
as cenas intercaladas, ora o menino, ora o adulto, há monólogos e roteiros.
Diferentes registros em consonância com o discurso da memória, funcionando como
base de toda uma tapeçaria de experiências muito pessoais do escritor.
Penso
que Aqui de dentro é a metáfora de um filme sendo feito. Total
metalinguagem que reflete a própria vida, porque em algum momento, todos nós
interpretamos um papel. Mas quero acreditar que sempre resta alguma essência de
nós mesmos em algum lugar.
Na
busca pela personagem, o primeiro elemento que esse narrador capta é o exílio. A
sensação de estar “apartado” como modo de vida. Como um ser humano fica à
deriva. Algo que eu conhecia muito intimamente. Tinha isso em mim. “Exílio”.
Conhecia isso. Não precisava ensaiar. A minha vida inteira era um preâmbulo.
Aqui ele soa como um maldito.
Digamos
que, em termos acadêmicos, não entendo nada de teatro, mas percebo a linguagem
do dramaturgo em muitas linhas. Apesar de toda a confusão e angústia que esse
livro detém, há um fio poderoso que nos puxa do labirinto.
Esse
tipo de narrativa não agrada de imediato quem não gosta de
cenas violentas, linguagem chula, pensamentos nonsense e complexidade
interior. Mas se admira uma linguagem poética combinada a um humor ácido para
refletir sobre a natureza de experiências contemplativas e inesquecíveis, com
melodia surrealista, o livro é esse mesmo.
Muito
da vida de Sam Shepard habita as entrelinhas de Aqui de dentro. Para
mim, ele será sempre o vaqueiro escritor, um tipo solitário que não queria
ficar sozinho.
Genial! Adorei a maneira como elaborou seu discurso neste texto. Tão sedutor que agora preciso ler este vaqueiro!💜💜💜
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