No fim das contas, o vaqueiro escritor

Sam Shepard (1943-2017)


E vi a mim mesma com Sam na cozinha dele em Kentucky, e estávamos falando da escrita. No fim das contas, ele dizia, tudo serve de forragem para uma história, o que significa, acho, que somos todos forragem. Estava sentada na cadeira de madeira de espaldar reto. Ele estava de pé olhando para mim como sempre. “Papa was a rolling stone” tocava no rádio, que era marrom no estilo anos 40. E pensei, quando ele esticou a mão para tirar o cabelo dos meus olhos, o problema dos sonhos é que no fim a gente acorda.

Assim termina O ano do macaco (2019), último livro que li de Patti Smith. Sam é Sam Shepard. Dramaturgo ganhador do Prêmio Pulitzer em 1979 e do PEN/Laura Pels em 2009. Escreveu três coletâneas de contos e mais de cinquenta peças. Partes do livro Crônicas de motel (1983) estão presentes no filme cult Paris, Texas (1984), dirigido por Wim Wenders e vencedor da Palma de Ouro em Cannes, do qual Shepard é roteirista. Atuou em mais de sessenta filmes e recebeu uma indicação ao Oscar em 1984 por The Right Stuff (Os eleitos – onde o futuro começa). É o vaqueiro escritor que habita os sonhos de Patti Lee em Linha M (2014).

Há um retorno da figura metafórica do escritor que conduz as coisas nos livros de Patti Smith. Essa figura me atraiu. Entrei no labirinto e logo estava pesquisando qual livro ler de Sam Shepard. Queria o escritor concreto.

Escolhi Aqui de dentro (2017), traduzido por Denise Bottmann, com prefácio de Patti Smith. Pensei logo em uma “poética dos sonhos”. Porque, no fim das contas, são eles que amarram o que é possível ser narrado. No prefácio, você percebe que a amizade entre os dois se transformou em comunhão existencial. Ninguém soube melhor que ela compreender o andarilho que trilhou instintivamente, de olhos abertos, as distâncias de suas estradas misteriosas.

Distribuídos em 56 pequenos capítulos, com estruturas nem um pouco convencionais,  os fragmentos de Aqui de dentro ampliam de diversas formas a paisagem interna de um só narrador, mas de essência mutável. Não foi fácil me encontrar nas imagens entretecidas na prosa rápida de Shepard, em sua pródiga poesia, nos diálogos e monólogos. Linguagem visceral de filme caseiro tremido.

Não foi fácil. Mas quando compreendi o coração cansado e a honestidade vigorosa do narrador, encontrei uma unidade. O menino fugitivo, o adolescente firme e o adulto inquieto (mais tarde traído pelos músculos) são uma mesma voz.

A escrita de Sam Shepard me agrada porque a profundidade dos significados se manifesta em frases curtas, que dizem tudo. Através de imagens poeirentas arrancadas da memória, há o contorno da relação problemática com o pai, mencionado em inúmeros capítulos como “homenzinho minúsculo”. Essa imagem é elaborada e reelaborada em sonhos recorrentes de uma forma encadeada.

Também recorrente é a presença de Felicity. O narrador menino nunca tinha ouvido aquele nome antes – como que saído de um romance inglês. Nem preciso dizer que o mise-en-abyme, meu caderno de anotações, foi rabiscado com mais alguns títulos. Felicity. Gritava feito um coelho preso na armadilha quando sentava de costas no pau do meu pai. Eu nunca tinha ouvido tanto êxtase e tanto horror, tudo ao mesmo tempo. A focalização é do menino, o discurso não. O discurso é da memória.

A narrativa se desenrola entre tons baixos que inesperadamente se tornam elevados quando alcançam a poesia.

Na composição dos episódios, surge o narrador adulto contracenando com a Garota Chantagem. Neles predominam diálogos aparentemente simples. Alternadamente, as conversas vão se tornando mais complexas e ajudam a definir a personagem que é esse narrador, para quem a ficção é libertação. No final desses diálogos, toda a discussão se concentra no processo da escrita.

Entre as cenas intercaladas, ora o menino, ora o adulto, há monólogos e roteiros. Diferentes registros em consonância com o discurso da memória, funcionando como base de toda uma tapeçaria de experiências muito pessoais do escritor.  

Penso que Aqui de dentro é a metáfora de um filme sendo feito. Total metalinguagem que reflete a própria vida, porque em algum momento, todos nós interpretamos um papel. Mas quero acreditar que sempre resta alguma essência de nós mesmos em algum lugar.  

Na busca pela personagem, o primeiro elemento que esse narrador capta é o exílio. A sensação de estar “apartado” como modo de vida. Como um ser humano fica à deriva. Algo que eu conhecia muito intimamente. Tinha isso em mim. “Exílio”. Conhecia isso. Não precisava ensaiar. A minha vida inteira era um preâmbulo. Aqui ele soa como um maldito.

Digamos que, em termos acadêmicos, não entendo nada de teatro, mas percebo a linguagem do dramaturgo em muitas linhas. Apesar de toda a confusão e angústia que esse livro detém, há um fio poderoso que nos puxa do labirinto.

Esse tipo de narrativa não agrada de imediato quem não gosta de cenas violentas, linguagem chula, pensamentos nonsense e complexidade interior. Mas se admira uma linguagem poética combinada a um humor ácido para refletir sobre a natureza de experiências contemplativas e inesquecíveis, com melodia surrealista, o livro é esse mesmo.

Muito da vida de Sam Shepard habita as entrelinhas de Aqui de dentro. Para mim, ele será sempre o vaqueiro escritor, um tipo solitário que não queria ficar sozinho. 




 

Comentários

  1. Genial! Adorei a maneira como elaborou seu discurso neste texto. Tão sedutor que agora preciso ler este vaqueiro!💜💜💜

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

A Quarentena (Le Clézio)

Rimas da vida e da morte (Amós Oz)

Afirma Pereira e os nossos dias